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A opinião se transformando em interpretação

Os textos de opinião podem se transformar num espaço de interpretação, haja vista a necessidade de os educandos refletirem acerca do assunto em evidência.
Opinião e interpretação – parceiras infalíveis do educador, no sentido de promover a capacidade reflexiva dos educandos
Opinião e interpretação – parceiras infalíveis do educador, no sentido de promover a capacidade reflexiva dos educandos
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Interpretar e expor acerca de um dos gêneros argumentativos, em especial a crônica argumentativa - eis a estratégia de ensino contida no planejamento da aula a ser ministrada no dia de hoje.

Caro educador, sobretudo o de Língua Portuguesa, por excelência, um dos entraves com os quais se depara mediante sua laboriosa luta cotidiana se demarca pela dificuldade advinda da interpretação textual? Não se sinta como se estivesse sozinho nessa empreitada, pois a sua dificuldade pode ser (e realmente é) a de muitos outros. Dessa forma, ao partir para uma sondagem na turma, cujo intento se define por avaliar a fluência verbal, a pontuação, entonação, enfim, o resultado parece assustador, não é verdade? E quando o “experimento” tende a se mostrar um pouco mais ousado, na intenção de avaliar a capacidade interpretativa? Ah! A situação parece se apresentar ainda mais estarrecedora. Ora, enxergar o que está por trás das palavras não é tarefa fácil, mas também não pode ser concebida como uma missão impossível.

Em face dessa realidade, nosso objetivo aqui é lhe apresentar algumas estratégias que, por meio de muito “empenho e dedicação”, podem se transformar em grandes aliadas. Para tanto, servimo-nos de uma crônica argumentativa, intitulada “Pensamentos de um correria”, abaixo expressa:

Pensamentos de um "correria"

                                          FERRÉZ

ELE ME olha, cumprimenta rápido e vai pra padaria. Acordou cedo, tratou de acordar o amigo que vai ser seu garupa e foi tomar café. A mãe já está na padaria também, pedindo dinheiro pra alguém pra tomar mais uma dose de cachaça. Ele finge não vê-la, toma seu café de um gole só e sai pra missão, que é como todos chamam fazer um assalto.

Se voltar com algo, seu filho, seus irmãos, sua mãe, sua tia, seu padrasto, todos vão gastar o dinheiro com ele, sem exigir de onde veio, sem nota fiscal, sem gerar impostos.

Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada.

O motoboy tenta se afastar, desconfia, pois ele está com outro na garupa, lembra das 36 prestações que faltam pra quitar a moto, mas tem que arriscar e acelera, só tem 20 minutos pra entregar uma correspondência do outro lado da cidade, se atrasar a entrega, perde o serviço, se morrer no caminho, amanhã tem outro na vaga.

Quando passa pelos dois na moto, percebe que é da sua quebrada, dá um toque no acelerador e sai da reta, sabe que os caras estão pra fazer uma fita.

Enquanto isso, muitos em seus carros ouvem suas músicas, falam em seus celulares e pensam que estão vivos e num país legal.

Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito.

Teve infância, isso teve, tudo bem que sem nada demais, mas sua mãe o levava ao circo todos os anos, só parou depois que seu novo marido a proibiu de sair de casa. Ela começou a beber a mesma bebida que os programas de TV mostram nos seus comerciais, só que, neles, ninguém sofre por beber.

Teve educação, a mesma que todos da sua comunidade tiveram, quase nada que sirva pro século 21. A professora passava um monte de coisa na lousa -mas, pra que estudar se, pela nova lei do governo, todo mundo é aprovado?

Ainda menino, quando assistia às propagandas, entendia que ou você tem ou você não é nada, sabia que era melhor viver pouco como alguém do que morrer velho como ninguém.

Leu em algum lugar que São Paulo está ficando indefensável, mas não sabia o que queriam dizer, defesa de quem? Parece assunto de guerra. Não acreditava em heróis, isso não!

Nunca gostou do super-homem nem de nenhum desses caras americanos, preferia respeitar os malandros mais velhos que moravam no seu bairro, o exemplo é aquele ali e pronto.

Tomava tapa na cara do seu padrasto, tomava tapa na cara dos policiais, mas nunca deu tapa na cara de nenhuma das suas vítimas. Ou matava logo ou saía fora.

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Era da seguinte opinião: nunca iria num programa de auditório se humilhar perante milhões de brasileiros, se equilibrando numa tábua pra ganhar o suficiente pra cobrir as dívidas, isso nunca faria, um homem de verdade não pode ser medido por isso.

Ele ganhou logo cedo um kit pobreza, mas sempre pensou que, apesar de morar perto do lixo, não fazia parte dele, não era lixo.

A hora estava se aproximando, tinha um braço ali vacilando. Se perguntava como alguém pode usar no braço algo que dá pra comprar várias casas na sua quebrada. Tantas pessoas que conheceu que trabalharam a vida inteira sendo babá de meninos mimados, fazendo a comida deles, cuidando da segurança e limpeza deles e, no final, ficaram velhas, morreram e nunca puderam fazer o mesmo por seus filhos!

Estava decidido, iria vender o relógio e ficaria de boa talvez por alguns meses. O cara pra quem venderia poderia usar o relógio e se sentir como o apresentador feliz que sempre está cercado de mulheres seminuas em seu programa.

Se o assalto não desse certo, talvez cadeira de rodas, prisão ou caixão, não teria como recorrer ao seguro nem teria segunda chance. O correria decidiu agir. Passou, parou, intimou, levou.

No final das contas, todos saíram ganhando, o assaltado ficou com o que tinha de mais valioso, que é sua vida, e o correria ficou com o relógio.

Não vejo motivo pra reclamação, afinal, num mundo indefensável, até que o rolo foi justo pra ambas as partes.

REGINALDO FERREIRA DA SILVA, 31, o Ferréz, escritor e rapper, é autor de "Capão Pecado", romance sobre o cotidiano violento do bairro do Capão Redondo, na periferia de São Paulo, onde ele vive, e de "Ninguém é Inocente em São Paulo", entre outras obras.

Disponível em Folha de São Paulo, acesso em 30 de maio de 2012.

Trata-se de uma crônica, sem dúvida. Mas como os educandos assim a concebem se não refletem acerca do que o discurso propõe? Por isso, o primeiro passo é mobilizá-los (no bom sentido, é claro) a se inteirar melhor da ideia retratada, e nada mais conveniente que partir para uma “roda” de leitura. Assim, como uma espécie de rodízio, no qual a leitura vai repassando de pessoa em pessoa, todas as vezes em que o educador considerar relevante, alguns apontamentos serão muitíssimos bem-vindos. Perceba que no trecho Quando o filho chora de fome, moral não vai ajudar. A selva de pedra criou suas leis, vidro escuro pra não ver dentro do carro, cada qual com sua vida, cada qual com seus problemas, sem tempo pra sentimentalismo. O menino no farol não consegue pedir dinheiro, o vidro escuro não deixa mostrar nada”  tal passagem se torna um momento propício para conduzir a uma reflexão aceca da violência que assola a sociedade como um todo. Por que as pessoas estão se mostrando cada vez mais individualizadas a ponto de se isolarem sob a proteção de um vidro fumê, quase invisível? O pedinte, aquele lá do sinal, certamente não terá condições nem de se expressar, pois o condutor, na certa, irá considerá-lo com cara de assaltante, por que não, pois as pessoas não trazem consigo a marca da paz, da boa intenção, sim?

Outra passagem, não menos relevante que a outra, desta vez demarcada por: Ele anda devagar entre os carros, o garupa está atento, se a missão falhar, não terá homenagem póstuma, deixará uma família destroçada, porque a sua já é, e não terá uma multidão triste por sua morte. Será apenas mais um coitado com capacete velho e um 38 enferrujado jogado no chão, atrapalhando o trânsito. ”

A intenção, subsidiando-se nesse, tende a ser um pouco mais profunda no que tange à reflexão, haja vista se tratar de uma “missão infalível”. Sim, pois do contrário não terá homenagem póstuma. No caso de havê-la, como ficará esposa, filhos, pais, mães, enfim, toda a família?

Educador, indubitavelmente, trata-se de um texto que rende uma longa, rica e produtiva discussão entre seus alunos. Assim, esperamos ter contribuído ao menos um pouco pra enriquecer seu trabalho em sala de aula, e, assim, despertar nos educandos algo que talvez tenha ficado para trás: a reflexão, o pensamento crítico acerca dos pontos que norteiam uma sociedade, uma sociedade cada vez mais imersa nas profundezas da ignorância, do descaso, da falta de idoneidade, enfim...


Por Vânia Duarte
Graduada em Letras