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Um trabalho interdisciplinar na voz de João Cabral de Melo Neto

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Este grande mestre nos demonstra a riqueza presente na linguagem

A princípio, pode ser que as palavras deste grandioso artista pareçam enfadonhas, sem sentido. Obviamente estamos nos referindo a algumas concepções proferidas pelos educandos ao estabelecerem familiaridade com o poema em questão. Contudo, a depender do instinto hábil e criativo do educador, essa proposta poderá se transformar em inesgotáveis alternativas didáticas. Pode até ser que o termo “inesgotáveis” denote uma expressiva hipérbole, mas o fato é que a literatura nos dá margem para percorrermos caminhos antes explorados e, consequentemente, “lapidarmos” a palavra em sua última instância.

Assim, o educador, com singular maestria, pode demonstrar que dispõe dessa inigualável habilidade fazendo com a que a literatura, antes de tudo, seja concebida como instrumento de reflexão, aos olhos dos alunos. Caso contrário, ela não passará de meros amontoados de palavras ditas ao léu.

Uma vez concretizado tal procedimento, pode-se dizer que o primeiro passo já foi dado rumo à concretização de outras propostas. Indo um pouco mais além, a realização de um trabalho interdisciplinar com o exemplo em questão torna-se bastante pertinente dada a possibilidade de explorar questões ligadas à Geografia, História, Ética (valores humanos) e à própria Literatura em si, por meio de uma análise discursiva mais apurada.

Aproveitando esse gancho literário, torna-se interessante que o educador enfatize os pressupostos ideológicos inerentes à estética modernista, na qual uma de suas características foi a abordagem da temática social (cotidiana) e da temática histórico-social, manifestada por um tipo de denúncia às mazelas imersas na sociedade. Sem dúvida, o poeta em questão soube tão bem representá-las.
 

 Sugere-se, dessa forma, “como entrada”, uma leitura atenta do poema. Para tanto, eis que seguem alguns fragmentos deste:
 

O RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI —

O meu nome é Severino,
como não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.

Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.

Como então dizer quem falo
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,

a de querer arrancar
alguns roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.

[...]
Fonte: http://www.culturabrasil.pro.br/joaocabraldemelonetoo.htm

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A segunda estrofe parece ir ao encontro dos fatos históricos propriamente ditos, os quais retratam a situação do Brasil-Colônia vivendo em meio à submissão do poderes de Portugal. Revela nitidamente que este “coronel”, que se chamou Zacarias, representa o senhor dos escravos que se aventurava mediante a beleza das negras e as fazia como objeto de satisfação pessoal.

A terceira e quarta estrofes nos apontam, entre outros fatores, uma questão geográfica, só que desta vez a exploração da Geografia Humana e Física será realizada no bom sentido, é claro. Para tanto, expressivos elementos surgem como subsídios, tais como: 

É o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.

vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

Fazendo alusão a um dos objetivos descritos nos PCNs, os quais revelam:

Questionar a realidade formulando-se problemas e tratando de resolvê-los, utilizando para isso o pensamento lógico, a criatividade, a intuição, a capacidade de análise crítica, selecionando procedimentos e verificando sua adequação.

Estes, por sinal, parecem fazer referência a alguns fragmentos, tais como:

Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,

[...]

Eis aí uma excelente oportunidade de promover uma reflexão acerca de um dos problemas que circundam a esfera social – a má distribuição de riqueza, a desigualdade social como um todo.

E como não ressaltar a questão dos valores ligados a questões éticas, como é o caso do preconceito, evidente em:

Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas
e iguais também porque o sangue,
que usamos tem pouca tinta.

Fica, portanto, uma questão a ser debatida: por que o Nordeste brasileiro é tão discriminado? 


Por Vânia Duarte
Graduada em Letras
Equipe Brasil Escola