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Análise do “fazer poético”

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A análise do fazer poético faz com que a Literatura se transforme em um instrumento de reflexão
A análise do fazer poético faz com que a Literatura se transforme em um instrumento de reflexão

Eis uma pergunta que paira no ar: como fazer com que os educandos se deleitem no mundo da poesia, se vivemos no mundo do imediatismo? Como se sentirem enlevados com tal, se a reflexão para eles não representa nada assim de tão... “atrativo”? 

Tudo parece se tornar ainda mais complicado quando o educador não se presta ao serviço de conferir ao texto poético as qualidades, os traços característicos que lhe são atribuídos. A começar pela leitura de um poema que, desprovido de ênfase, abnegado das entonações necessárias, parece ser mais uma receita culinária que propriamente um texto cujas emoções, sentimentos, melodia, precisam ser devidamente aflorados. Tal realidade nos remete a uma conclusão não muito animadora: ao final do Ensino Médio, a Literatura (sobretudo a arte poética) para alguns educandos não representará instrumento de reflexão, tampouco trabalho de moldagem, de refinamento. 

Contudo, nada parece assim tão irremediável. Obviamente que o primeiro passo a ser dado se restringe à postura do educador no sentido de repensar como têm sido as aulas de Literatura, depois... algumas sugestões fornecerão a base necessária à situação, visando a uma mudança de todo este contexto.

Falando nisso, o propósito ora atribuído ao artigo em questão se revela por apresentar algumas dicas, no sentido de o professor fazer com que suas aulas obtenham o resultado que lhes é esperado. Para tanto, nada que uma criação de nosso mestre Carlos Drummond de Andrade não ofereça os elementos necessários a nosso intento e, como eleita, apresentamos a Procura da poesia, expressa a seguir:  

Procura da Poesia

 

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.
Diante dela, a vida é um sol estático,
não aquece nem ilumina.
As afinidades, os aniversários, os incidentes pessoais não contam.
Não faças poesia com o corpo,
esse excelente, completo e confortável corpo, tão infenso à efusão lírica.

Tua gota de bile, tua careta de gozo ou dor no escuro
são indiferentes.
Não me reveles teus sentimentos,
que se prevalecem de equívoco e tentam a longa viagem.
O que pensas e sentes, isso ainda não é poesia.

Não cantes tua cidade, deixa-a em paz.
O canto não é o movimento das máquinas nem o segredo das casas.
Não é música ouvida de passagem, rumor do mar nas ruas junto à linha de espuma.

O canto não é a natureza
nem os homens em sociedade.
Para ele, chuva e noite, fadiga e esperança nada significam.
A poesia (não tires poesia das coisas)
elide sujeito e objeto.

Não dramatizes, não invoques,
não indagues. Não percas tempo em mentir.
Não te aborreças.
Teu iate de marfim, teu sapato de diamante,
vossas mazurcas e abusões, vossos esqueletos de família
desaparecem na curva do tempo, é algo imprestável.

 

 

 

 

Não recomponhas
tua sepultada e merencória infância.
Não osciles entre o espelho e a
memória em dissipação.
Que se dissipou, não era poesia.
Que se partiu, cristal não era.

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Convive com teus poemas, antes de escrevê-los.
Tem paciência, se obscuros. Calma, se te provocam.
Espera que cada um se realize e consume
com seu poder de palavra
e seu poder de silêncio.
Não forces o poema a desprender-se do limbo.
Não colhas no chão o poema que se perdeu.
Não adules o poema. Aceita-o
como ele aceitará sua forma definitiva e concentrada
no espaço.

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta,
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

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Uma leitura bem aos “moldes poéticos” representa o passo inicial de todo o procedimento. Em seguida, sugira que os alunos analisem a forma como o emissor (no caso, o eu lírico) se dirige ao interlocutor (os leitores de uma forma geral). Os verbos, ora utilizados no imperativo afirmativo, ora no imperativo negativo, de forma indubitável revelam como deve proceder aquele alguém que porventura deseja ingressar no mundo das letras, alguém que vez ou outra deseja se ocupar da escrita de um poema. Mas a análise não para por aí. É, pois, chegado o momento de fazê-los ler nas entrelinhas. Claro! Se assim não for, certamente que pode se tratar de qualquer outra modalidade, menos da arte poética.

Comece instigando-os logo pelo primeiro verso:

Não faças versos sobre acontecimentos.
Não há criação nem morte perante a poesia.

Eis que, quando analisado fora de seu contexto, um provável questionamento poderá emergir: será que a poesia não se constrói a partir de uma dada realidade? Ora, estudamos, falamos, acerca das posições ideológicas inerentes a cada autor que fez de uma determinada época (por meio da palavra) seu instrumento de voz, não é verdade? O fato é que deve ser explicado a eles que o “contexto”, a realidade externa, serviu apenas como pano de fundo, pois o que ficou marcado foi o trabalho que o artista fez com a própria linguagem. Por que, ao se revelar como uma forma de denúncia, uma forma de contestação, tudo parece tão ameno, tão camuflado? Claro! A poesia é efêmera (Não há criação nem morte perante a poesia.), é o dizer acerca daquilo não nítido, pois tudo é obscuridade, haja vista que o sentido real se encontra no âmago das palavras.            

Outro verso que se apresenta como ponto de partida para que os alunos compreendam o sentido conotativo que se atribui à arte poética, ora expresso por:

Penetra surdamente no reino das palavras.
Lá estão os poemas que esperam ser escritos.
Estão paralisados, mas não há desespero,
há calma e frescura na superfície intata.
Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário.

Por que as palavras se encontram em estado de dicionário? Caso permanecessem assim, inertes, a poesia certamente não causaria o efeito desejado: o de enlevar, surpreender, emocionar, enfim... a emoção persistirá enquanto persistir a subjetividade advinda do escritor. Tal afirmativa parece tão bem se encaixar ao analisarmos os versos:

Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra

Eis aqui uma excelente forma de fazer o aluno refletir acerca do sentido denotativo e conotativo das palavras: o que seriam as mil faces secretas e o que seria a face neutra?

Faça com seus alunos como o próprio Carlos Drummond, magnificamente, sugere-nos:

Repara:
ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras.
Ainda úmidas e impregnadas de sono,
rolam num rio difícil e se transformam em desprezo.

E não se se esqueça de questionar:

- Por que ermas de melodia e conceito
elas se refugiaram na noite, as palavras?

Por meio de tal verso há a oportunidade de deixar bem claro que fazer poesia não é colocar as palavras juntamente, lado a lado. Sem melodia, sem uma “pitada” de emoção, sem um toque de pessoalidade... não há “fazer poético”, haja vista que rolam num rio difícil e se transformam em desprezo, possivelmente.


Por Vânia Duarte
Graduada em Letras