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O trabalho com o filme “A onda”, pensado para as aulas de História, geralmente possui uma relação direta com a discussão dos regimes totalitários em sala de aula. Afinal, na própria narrativa do filme, baseado em fatos reais, temos a história de um professor que aplicou alguns dos parâmetros praticados nos governos nazista e fascista para então testar a eficiência dessas práticas em um grupo de alunos. Contudo, não poderíamos aqui definir a aplicação didática do filme apenas para frisarmos os perigos dos valores nazifascistas.
Prestando atenção à narrativa, podemos empreender uma discussão mais ampla e profunda ao retomarmos especificamente a mesma questão que iniciou a aula do Sr. Wenger: “Afinal, quais seriam as razões que permitem a ascensão de um governo de natureza totalitária?” Já de início, os alunos do filme buscaram motivos de ordem econômica para então justificar a organização de governos como os de Hitler e Mussolini. Entre outras razões, destacaram a inflação, a falta de emprego e o agravo das injustiças sociais para explicar tais governos.
Feita tal pontuação, podemos questionar para os nossos alunos se os seus supostos “colegas” do filme apontaram explicações de natureza histórica para o nazifascismo. Sem dúvida, se já contemplado tal conteúdo em sala de aula, muitos alunos viriam a concordar que as explicações do filme conferem com os conteúdos geralmente apresentados nos livros didáticos. Sendo assim, os governos totalitários seriam entendidos como regimes de natureza extrema que justamente respondem à ameaça imposta por condições de vida igualmente extremas.
Seria essa a explicação que melhor definiria tal experiência histórica? Seria apenas com a repetição dessas mesmas condições de ordem econômica que poderiam empreender o risco do retorno desse tipo de governo? Mediante essas questões, a história contida em “A onda” permite aos alunos responderem a essas duas perguntas negativamente. Para tanto, basta lembrar que a Alemanha retratada no filme era uma das mais proeminentes economias de todo o continente europeu e do mundo. Essa mesma afirmação foi dada pelos alunos do professor Rainer Wenger no início de seu curso.
Realizadas tais considerações, a viabilidade da pequena experiência totalitária experimentada pela turma do filme não condiz às condições sociais e econômicas que eles mesmos apontaram como fundamentais para entender o nazismo e o fascismo das décadas de 1930 e 1940. Sendo assim, os nossos alunos se veem obrigados a buscar outras motivações que extrapolam a justificativa economicista para estabelecer a compreensão do acontecido. Daí surge o desafio dessa outra interpretação para o fato.
Em um primeiro aspecto, a questão do desequilíbrio psíquico poderia ser algum tipo de justificativa para que a perseguição, o extermínio e a intolerância fossem explicados. No entanto, como já levantado por vários estudiosos do assunto, o nazismo nasceu em uma nação que tinha uma grande produção de ordem intelectual e, ao mesmo tempo, devemos salientar que a grande maioria das pessoas envolvidas nas duas experiências totalitárias não tinha nenhum desvio grave de personalidade.
É mediante esse instigante impasse que o professor deve mostrar que a experiência totalitária deve ser compreendida a partir do princípio de eficiência que marcaram essas duas situações. Os alemães aderiram ao regime nazista na medida em que as ações daquele governo conseguiram resolver as demandas sociais e econômicas daquele tempo. Por outro lado, os alunos do professor Wenger fizeram o mesmo, pois a rotina de coesão e cooperação oferecia vantagens na vida escolar dos alunos.
Essa primeira impressão salientada pode ser buscada na narrativa do filme quando percebemos a reação positiva da jovem Karo. Mesmo tendo uma educação familiar liberal, ela se impressionou com a forma eficiente que as ordenações de Wenger são capazes de potencializar a eficácia de seus estudos e de seus outros colegas. Mesmo com o alerta dado pela sua mãe, representante maior dessa educação liberal, ela se empolgou inicialmente com a eficiência provocada pelo “pequeno regime”.
Ao apontar a centralidade do princípio de eficiência, notamos que os envolvidos nessa situação são forçados a negociar com valores morais e éticos. Em suma, esses valores são os valores de tolerância e respeito que, em diversas situações, seriam aqueles que tornariam a obtenção eficiente e acelerada dos objetivos muito mais complexos e até mesmo conflituosos. Desse modo, a aceitação da experiência autoritária se transforma em uma experiência de esvaziamento. Mas de que maneira?
Esse esvaziamento significa abrir mão da autonomia pela qual o indivíduo reconhece os seus valores e se vale dos mesmos para lidar com o mundo e, de tal modo, poder concordar e discordar das situações postas na vivência da realidade. No caso de Hitler ou do professor Rainer, os integrantes daquele coletivo abriram mão dessa capacidade decisória ou efetivamente participativa pela figura do líder que podia indicar as opções que seriam indiscutidamente acatadas em prol de um fim eficiente.
Em nome da eficiência negaram a própria consciência histórica que possuíam sobre a dimensão e os malefícios provocados por regimes autoritários. Uma das mais contundentes provas dessa anulação pode ser vista na parte final do filme, quando o professor Rainer impõe aos alunos reunidos no ginásio a forma pela qual Marco, o traidor da “Onda”, deveria ser punido. Atordoados pela decisão, os alunos esperavam que fosse o seu próprio líder que resolvesse o dilema. Estavam esvaziados de sua própria autonomia.
Seria por meio desses elementos que poderíamos compreender e discutir o tema dos regimes totalitários através de “A onda”. Ao fim do debate, podemos assim perceber que os valores que hoje norteiam a democracia, a cidadania e a tolerância não podem ser romanticamente compreendidos como naturais aos indivíduos. Pelo contrário, tais elementos são possíveis apenas através do debate, por uma educação que seja efetivamente comprometida com a efetivação dessas metas de ordem humanitária e por todas as ações que se contraponham à autonomia de todo e qualquer sujeito histórico.
Por Rainer Gonçalves Sousa
Colaborador Brasil Escola
Graduado em História pela Universidade Federal de Goiás - UFG
Mestre em História pela Universidade Federal de Goiás - UFG