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Ao debater o processo de colonização das terras americanas, o professor deve ter o cuidado de não restringir a ocupação e o conflito estabelecidos pelos colonizadores somente pelas motivações de ordem econômica. É claro que, sob o contexto mercantilista, a conquista e a exploração de novas terras eram pontos fundamentais na explicação de tal processo histórico. No entanto, devemos salientar que essa noção de choque entre os europeus e os nativos também aconteceu por outros motivos.
Além das motivações econômicas, devemos expor aos alunos que essa situação de conflito também se embasou na visão etnocêntrica dos colonizadores. Mais do que uma simples questão da época, devemos mostrar que o etnocentrismo é um modo de se enxergar a cultura alheia que ainda vigora na relação entre os povos. Para tanto, basta tomar como exemplo as várias chacotas que costumamos utilizar quando nos referimos aos integrantes de outra nação ou cultura.
Feita essa consideração, sugerimos ao professor a realização de um trabalho de análise e interpretação do relato do historiador e cronista português Pero de Magalhães Gandavo. Nascido no século XVI, esse escritor foi responsável pela organização de uma extensa obra em que falava principalmente sobre a fauna e a flora das terras brasileiras. Naquele período, em que os europeus ainda se acostumavam com o alargamento dos horizontes, esse tipo de texto chamava a atenção do homem branco.
Ao fazer suas descrições da paisagem brasileira, Pero de Magalhães acabou vez ou outra estabelecendo algumas observações sobre os índios que viviam aqui no Brasil. É buscando esse tipo de relato que o professor tem a oportunidade de mostrar que a dominação e o conflito que marcam a implantação da ordem colonial também se arquitetaram pela organização de todo um discurso em que o europeu claramente inferiorizava a população nativa.
De tal modo, sugerimos ao docente a exposição do seguinte texto de Pero:
Os índios andam nus sem nenhuma cobertura. Vivem em aldeias com 7 ou 8 casas. Cada casa está cheia de gente e nela cada um tem sua rede de dormir armada. Não há, entre eles, nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força. (...) Este principal tem três ou quatro mulheres (...) Não adoram coisa alguma nem acreditam que há depois da morte glória para os bons, e pena para os maus. Assim, vivem bestialmente sem ter conta, nem peso nem medida. (Pero de Magalhães Gandavo, Tratado da Terra do Brasil, século XVI)
Em um primeiro momento, vemos que o autor se restringe a descrever o modo de vida dos nativos fazendo referências à sua nudez e às moradias em que se instalavam. Logo em seguida, aponta a ausência de autoridades políticas que regulamentassem a vida em sociedade, expondo somente a figura de um líder que atuavam em situações pontuais. Por fim, assinala a prática da poligamia, a ausência de qualquer culto religioso ou código moral que limitasse as ações dos indivíduos bons ou ruins.
Mediante essa fala, devemos frisar que a descrição não pode ser vista de modo imparcial. Para isso é necessário pontuar que as características salientadas e destacadas pelo produtor do texto dialogam justamente com os valores e traço de sua cultura. Afinal, na condição de europeu do século XVI, Pero de Magalhães era cristão, subordinado às leis de uma nação absolutista e tinha a monogamia como padrão de comportamento entre os seus comuns.
Ao apontar essas características é que compreendemos por qual motivo ele encerra esse mesmo relato dizendo que esses índios viviam “bestialmente”. A expressão de tom degradante se aplica justamente pelo fato da comunidade de nativos não partilhar dos valores que ele, enquanto europeu, tem para si como verdade. Ao fazer esse tipo de constatação, o cronista português reafirma uma condição de superioridade cultural que também viria a justificar a ação colonizadora sob as populações locais.
Por Rainer Sousa
Mestre em História
Equipe Brasil Escola