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“... Um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letrado. Alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; letrado é aquele que sabe ler e escrever, mas que responde adequadamente às demandas sociais da leitura e da escrita. Alfabetizar letrando, é ensinar a ler e escrever no contexto das práticas sociais da leitura e da escrita, assim o educando deve ser alfabetizado e letrado. A linguagem é um fenômeno social, estruturada de forma ativa e grupal do ponto de vista cultural e social. A palavra letramento é utilizada no processo de inserção numa cultura letrada...
... O letramento é cultural, por isso muitas crianças já vão para a escola com o conhecimento alcançado de maneira informal absorvido no cotidiano...” (Hamze, 2004)[1]
“... Um grande marco na história da humanidade foi, sem dúvida, a invenção da escrita. Ao longo dos séculos foi sendo aperfeiçoada, recriada. Usos e funções para a escrita foram variando, acompanhando as necessidades do homem de registrar suas memórias, de alcançar mundos não alcançados anteriormente pela palavra oral, de veicular idéias, de criar novas realidades. Ao longo do tempo, do mesmo modo, os conhecimentos foram se especificando, definindo-se por áreas, e em conseqüência determinando novos modos de escrever, de registrar esses diferentes domínios do saber...
... A noção de letramento está associada ao papel que a linguagem escrita tem na nossa sociedade. Logo, o processo de letramento não se dá somente na escola. Os espaços que freqüentamos, os objetos e livros a que temos acesso, as pessoas com quem convivemos, também, são agências e agentes de letramento...
... A língua está viva nos textos que foram e são produzidos, orais e escritos...” (Goulart, 2004)[2]
Pelos trechos transcritos acima percebemos que o termo “letramento”, embora usualmente esteja associado a idéia do alfabetizado que consegue ler e escrever o cotidiano através do conhecimento formal, pode ter uma concepção mais ampla, não se limitando apenas à produção literária, mas principalmente a outros tipos de linguagem, que embora não se traduzam em livros, são efetivamente transmitidas de geração para geração criando o saber não limitado a procedimentos formais.
Dessa maneira toda e qualquer manifestação de transmissão de conhecimento acaba sendo uma forma de letramento.
Se considerarmos que a escrita formal se manifesta de modos diferentes, dependentes do conteúdo daquilo que ela pretende expressar, poderemos generalizar um pouco mais esse entendimento.
Por exemplo a “ciência” matemática, usa de grafismos e símbolos próprios e “universais” e que podem ser traduzidos pela língua escrita formal própria a cada nacionalidade que se deseje, da mesma maneira que fazemos quando desejamos traduzir um texto, por exemplo, da língua inglesa para a língua portuguesa. Mas o que representam esses símbolos, senão o patrimônio cultural e social daqueles que os usam. Vale ressaltar que, quando usou-se da expressão universal para qualificar os símbolos matemáticos, tal colocação só foi possível pela existência de acordos internacionais que dão significação única aos mesmos.
Em recente estudo realizado com tribos amazônicas, foi descoberto um grupo indígena que consegue realizar todas as operações matemáticas relacionadas às necessidades diárias dos mesmos sabendo contar apenas até o três. Diríamos então que, não são alfabetizados quanto às relações matemáticas aceitas no mundo atual!
Voltando ao texto onde Goulart diz que letramento está associado ao papel que a linguagem escrita tem na nossa sociedade, diríamos então que, tais índios, embora não possuam conheceres matemáticos mais elaborados, possuem letramento matemático suficiente para expressar suas relações e necessidades sociais.
Dessa maneira acreditamos que, o termo letramento, embora seja mais usado para expressar as relações da língua formal com o conhecer social, possa ser usado para expressar outras relações específicas de outras ciências que, embora usem de simbologias próprias reconhecidas internacionalmente, se traduzem de modo usual e corriqueiro dentro do saber popular de determinadas sociedades.
Tomemos as reações químicas, objeto de estudo da ciência química, como um exemplo dessa inter-relação e suas manifestações.
Termos como reações de saponificação são específicos de pessoas que possuem o conhecer formal a respeito daquilo que no meio “comum” conhecemos por sabão.
Se uma pessoa é possuidora desse conhecimento específico e consegue relacioná-lo às implicações do saber comum, diríamos então que essa pessoa é alfabetizada e letrada a respeito do assunto.
E uma outra pessoa, “comum”, que não tendo o saber específico, ainda assim é possuidora dos meios para realizar a fabricação do sabão, usando de procedimentos e de termos que foram passados de pais para filhos ou que são de conhecimento geral dentro da sociedade onde se relaciona? Que tipo de conhecimento ela possui?
Tomemos como referência a seguinte receita passada por uma senhora de mais de oitenta anos de idade às suas filhas através de uma receita sobre como fabricar sabão:
- Juntar dentro de um jacá[3] a cinza do fogão de lenha até encher.
- Para preparar a dicuada[4], colocar o jacá dentro de uma vasilha grande e jogar água por cima da cinza. Vai sair um caldo preto que é que nem soda e que serve para cortar a gordura.
- Dentro do tacho você põe a gordura, mais a dicuada, mais a soda, mais a água e põe para ferver.
- Com uma colher de pau você mexe bem o tacho tomando cuidado para não encostar na espuma que forma porque ela queima.
- Quando o sabão começar a soltar bolhas grandes é porque já esta secando.
- Para testar se precisa por mais soda no sabão você pega um pouco e põe numa vasilha com água. Se formar gotas de óleo ainda tem gordura e você põe um pouco mais de soda e mistura bem.
- Para testar se o sabão já está no ponto você pega um pouquinho e põe na ponta da língua. Se a língua ficar amarrando é por que precisa por mais gordura e misturar bem.
- Depois de pronto é só deixar endurecer e cortar do tamanho que você for usar.
Para as pessoas que pretendam fabricar sabão de forma artesanal, ou mesmo industrialmente, o processo descrito acima é pertinente e fundamentado em reações e princípios químicos descritos e estudados pela ciência química.
A reação de saponificação é uma reação de hidrólise alcalina de uma gordura ou óleo e a conseqüente neutralização do ácido graxo formado (ácido de um hidrocarboneto de cadeia longa) pela base forte presente no meio. Por exemplo, na reação entre a triestearina (uma gordura) e a potassa caustica (dicuada), uma das possíveis reações químicas para o procedimento descrito na receita acima, teríamos a formação de glicerina e do estearato de potássio, um sal mais conhecido por sabão, traduzidos pela seguinte representação química:
Em fábricas ou laboratórios, o teste para detecção da saponificação completa da gordura utilizada é o mesmo descrito pela receita, ou seja, coloca-se uma porção da massa em um pouco d’água e a presença de gotas de óleo indicam a necessidade de uma quantidade adicional de álcalis. Por outro lado o teste para verificação de excesso de álcalis, pelos perigos a que se expõe quem se utilizar do procedimento descrito na receita, é substituído pela determinação do pH da pasta usando-se meios apropriados que indicam a neutralização do meio.
A dicuada nada mais é do que a reação de óxidos e carbonatos de metais presentes nas cinzas, principalmente o potássio, que reagindo com a água leva a formação de uma base forte, o hidróxido de potássio aquoso.
A soda descrita pela receita é o mesmo álcalis utilizado no processo industrial para fabricação dos sabões, ou seja o hidróxido de sódio.
Como se percebe, embora não possuindo o conhecimento que a ciência química faculta àqueles que a estudam, qualquer pessoa que, de posse da receita acima, se dispusesse a fabricar sabão, não só conseguiria fazê-lo, mas ainda teria controle de todos os processos químicos envolvidos.
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[1]Amélia Hamze. Professora da FEB/Barretos. CETEC/Barretos. FISO/Barretos.
[2] Cecília Maria Aldigueri Goulart. Doutora em Letras pela PUC/Rio. PROALE – Programa de Alfabetização e Leitura. Faculdade de Educação/Universidade Federal Fluminense – UFF.
[3] Espécie de cesto de forma variável feito de taquara ou cipó. (FERREIRA, AURÉLIO B. de H. Pequeno dicionário brasileiro da língua portuguesa. 10. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1972)
[4] Termo usado no meio rural para descrever o que formalmente se conhece por potassa caustica. Hidróxido de potássio.
Voltemos então a questão levantada acima. Que tipo de conhecimento possui a pessoa que se dispusesse a realizar tal receita, mesmo sem ser “alfabetizada” em química?
Se considerarmos que possui, o conhecimento comum às relações sociais e culturais do meio onde está inserida e que tal conhecimento lhe permite realizar e interagir com uma ciência formalizada, da qual, muitas vezes, nem mesmo ouviu falar, poderíamos definir, então, esse conhecimento como letramento em química!
Letramento em química seria então, o conhecer não específico de processos estudados pela ciência química e que estão inseridos nas praticas sociais e culturais, dentro do cotidiano.
Professora Orientadora – AMÉLIA HAMZE
Alunos– ALBERTO LAZZARINI NETO
JOSÉ FRANCISCO BACHIEGA CARRIJO
JOSEGUERI CELERI
LUIS NELSON PRADO CASTILHO
FACULDADES UNIFICADAS - QUÍMICA
Referências Bibliográficas:
AMORIM, C. Tribo do Amazonas só sabe contar até três. Folha Online, 20 agosto 2004. Disponível em: . Acesso em: 09 setembro 2004.
GOULART, C. M. A. Letramento e leitura da literatura. Disponível em: . Acesso em: 09 setembro 2004.
HAMZE, A. Alfabetização ou letramento?. Disponível em: . Acesso em: 09 setembro 2004