Ninguém menos que Carlos Drummond de Andrade. Esse é o personagem que irá adentrar o recinto da sala de aula. Sábias palavras tomarão conta, envolverão os educandos num clima nostálgico, por vezes misturado a um leve toque de ironia advinda do autor, mas uma ironia parece que retirada lá, lá do fundo da alma. Uma ironia que, se não formos hábeis o bastante para descortinarmos o que ele quer nos dizer, tudo não passará de breves palavras. Mas isso não, isso não poderá ocorrer.
Caro educador, desperte o que há de mais proveitoso em seus alunos, sobretudo em se tratando da leitura literária – o poder de analisar, de ver além das aparências, além de simples linhas. Simples e... muitas vezes tortas, pois muitos quando não entendem a mensagem chegam a criticar, esnobar aquilo que acabaram de ler. Assim, em razão dessa realidade, como sugestão, inicie a leitura você mesmo (a) e, desde o início, dê a sua voz o tom que ela requer, a melodia que a linguagem artística exige. Faça-os despertar, por meio de cada linha, de cada parágrafo, à riqueza, à sabedoria, ainda que, como antes dito, de forma irônica, expressas nas palavras deste sábio representante de nossas letras, que foi Carlos Drummond de Andrade.
Feito isso, ou seja, terminada a leitura, parta para uma roda de conversa, para um círculo de debate, cujo intento se defina tão somente para o despertar da reflexão, pois a mensagem demarcada por meio do discurso nos faz sensibilizados, sem dúvida. E depois, como proposta sugestiva, eis as questões que seguem abaixo:
Debaixo da Ponte
Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta d’água, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte.
À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne.
Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe frequentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência.
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Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte.
Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores.
Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica.
Há duas vagas debaixo da ponte.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Debaixo da ponte. In: Obra Completa,
Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967, p. 896-897.
a - “ A ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo”. Apesar de o autor afirmar que a parte de baixo não pertence a ninguém, você sabe que muitos a habitam por não ter onde morar. Em sua opinião, o que deveria ser feito, principalmente por parte dos governantes, para que o acesso à moradia fosse algo conquistado por todas as pessoas?
b - Outro trecho, que também nos faz refletir bastante, diz o seguinte: ”Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte”. Você já parou para pensar que a sua situação é diferente dos personagens da crônica, pois realmente pode dar endereço a alguém, sabe por quê? Porque você possui um lar, uma moradia. Dessa forma, como se sente?
c - Quando o autor afirma que ”até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua”, ele está reafirmando que o ar é essencial à nossa sobrevivência, por isso devemos adotar atitudes no sentido de preservá-lo, conservá-lo em toda a sua totalidade. Contudo, não é exatamente isso que presenciamos, pois a poluição se tornou mais um entre os graves problemas ambientais. O que você pensa sobre isso?
Por Vânia Duarte
Graduada em Letras