O espaço urbano constrói-se a partir das contradições manifestas pela lógica do sistema capitalista. A constante busca por segurança materializa-se na constante elevação dos muros e das grades no seio das grandes cidades, na construção de cercas elétricas e na elaboração de sistemas de segurança em condomínios cada vez mais fechados.
Em um processo denominado autosegregação, as elites revelam a sua preocupação em buscar novos locais de moradia, em zonas rurais ou pouco habitadas, geralmente afastadas dos grandes centros das cidades, em condomínios de luxo que gozam do máximo e melhor modo de segurança possível, a fim de gerar conforto psicológico e tranquilidade.
Essa dinâmica é demonstrativa do medo causado pelo crescimento dos índices de violência e marginalidade, que se concentram nos espaços urbanos e ameaçam a segurança da população. No entanto, questiona-se se essa condição de proteção, travada a todo custo por aqueles que podem financiá-la, realmente traz algum tipo de proteção real.
Em sala de aula, o professor pode trazer à tona essa discussão através da música Muros e Grades, da banda Engenheiros do Hawaii, que reflete de forma crítica e brilhante as contradições presentes não tão somente nas cidades, mas nas práticas humanas que nela se manifestam.
Muros e Grades
Engenheiros do Hawaii
Nas grandes cidades do pequeno dia a dia
O medo nos leva a tudo, sobretudo a fantasia
Então erguemos muros que nos dão a garantia
De que morreremos cheios de uma vida tão vazia
Erguemos Muros
Nas grandes cidades de um país tão violento
Os muros e as grades nos protegem de quase tudo
Mas o quase tudo quase sempre é quase nada
E nada nos protege de uma vida sem sentido
O quase tudo quase sempre é quase nada
Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre cobras
Entre as sobras
Da nossa escassez
Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre sombras
Entre escombros
Da nossa solidez
Nas grandes cidades de um país tão surreal
Os muros e as grades
Nos protegem de nosso próprio mal
Levamos uma vida que não nos leva a nada
Levamos muito tempo prá descobrir
Que não é por aí... não é por nada não
Não, não pode ser...é claro que não é
Será?
Meninos de rua, delírios de ruína
Violência nua e crua, verdade clandestina
Delírios de ruína, delitos e delícias
A violência travestida, faz seu trottoir
Em armar de brinquedo, medo de brincar
Em anúncios luminosos, lâminas de barbear!
Um dia super
Uma noite super
Uma vida superficial
Entre cobras
Entre as sobras
Da nossa escassez
Uma voz sublime
Uma palavra sublime
Um discurso subliminar
Entre sombras
Entre escombros
Da nossa solidez
Viver assim é um absurdo
Como outro qualquer
Como tentar um suicídio
Ou amar uma mulher
Viver assim é um absurdo
É um absurdo (4x)
A primeira frase da canção é emblemática: “nas grandes cidades do pequeno dia a dia”. Desse modo, o autor espacializa a discussão para o contexto urbano e para as práticas cotidianas.
Em seguida, o eu lírico estabelece a questão problema: “O medo nos leva a tudo, sobretudo a fantasia/ Então erguemos muros que nos dão a garantia/ De que morreremos cheios de uma vida tão vazia”.
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A primeira questão que o professor pode realizar a seus alunos é: que medo é esse a que o autor se refere?
É o medo das grandes cidades, o medo de ter a própria casa invadida e se tornar um cativeiro, o medo de ser assaltado nas ruas, o que nos faz preferir, por exemplo, pedir comida a domicílio a ir a um restaurante. É o medo da violência e das contradições sociais manifestas no espaço.
Em virtude desse medo, erguemos muros, instalamos câmeras, trancamo-nos em casa e, se possível, contratamos seguranças. Nessa lógica, os muros aumentam e individualizam as nossas relações, que estão cada vez mais virtuais e, como constata o autor, cada vez mais “vazias”.
Na segunda estrofe, o autor refere-se a “um país tão violento”, em uma referência indireta ao Brasil. Nesse contexto, ele destaca que os muros e as grades que erguemos cotidianamente nos protegem de quase tudo e nos lembra de que esse “quase tudo, quase sempre, é quase nada”, pois não nos torna imunes aos preconceitos e às culturas de massa, às quais somos cotidianamente submetidos: “E nada nos protege de uma vida sem sentido”.
Outro destaque merece ser realizado: na quinta estrofe da música, o eu lírico afirma que “os muros e as grades nos protegem de nosso próprio mal”. Essa afirmação é importante e merece ser lembrada pelo professor em sala de aula, pois nos faz lembrar de que o “mal” da sociedade é criado pela própria sociedade, na qual ocorrem os processos de concentração de renda, exclusão social e favelização, que expõem os indivíduos a condições de miséria e disseminam a violência entre pessoas que não possuem outra opção senão essa. A própria lógica urbana sustenta seus problemas.
Por último, o autor realiza quase que uma descrição de uma paisagem tipicamente urbana, com crianças de rua, violência, segregação espacial (“verdades clandestinas”), prostituição, propagandas e anúncios. Isso nos mostra que, por mais que estejamos “atrás das grades”, envoltos por grandes muros, deparamo-nos cotidianamente com esses problemas e, não necessariamente, importamo-nos com eles.
Apesar dessa breve análise, a música apresentada pode servir como um importante recurso didático pelo professor de Geografia para explorar a dinâmica espacial dos problemas urbanos, realizando uma discussão que vise à promoção de uma profunda reflexão sobre o tema em tela. Ao final, a nossa sugestão é a de que o professor proponha aos alunos que elaborem um texto dissertativo, relatando suas impressões com relação à letra da música. Outra opção é a produção de um texto em que o aluno faça uma relação entre os problemas apresentados pela música e a cidade ou bairro onde ele mora.
Por Rodolfo F. Alves Pena
Graduado em Geografia