Educar cidadãos para o presente e para o futuro

A pandemia escancarou a desigualdade do acesso à tecnologia em nosso país, o que mostra que ainda temos um caminho longo a percorrer para alcançar uma educação democrática
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 (*) Por Diana Silva e Raquel Franzim

A tecnologia está tão presente nos processos da vida contemporânea que a necessidade de conhecer e agir com responsabilidade no mundo digital é tão importante quanto a necessidade de saber ler e escrever. Essa é uma compreensão de vários educadores, especialistas e países que vêm pensando e construindo currículos escolares nas últimas décadas.

A educação para uma relação criativa e responsável com a tecnologia deve ser uma agenda prioritária em nosso país se queremos garantir o desenvolvimento pleno, o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho, como indica o artigo segundo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira. Para tal, é preciso compromisso com uma educação não apenas focada na melhoria do processo de aquisição da informação ou com a preparação de estudantes para o uso das tecnologias. Sobretudo que esteja comprometida com o desenvolvimento integral de crianças e adolescentes e que os ajude a reconhecer a realidade e a agir de modo a transformá-la positivamente.

Com a pandemia, os dados assimétricos sobre acesso e uso da tecnologia entre os estudantes mais privilegiados socioeconomicamente e a maioria dos estudantes revelam o aprofundamento da multifacetada desigualdade educativa em nosso país. 4,8 milhões de crianças vivem em domicílios sem acesso à internet, aprofundando ainda mais as desigualdades existentes, como destacado na TIC 2019 - pesquisa que mapeia o acesso, o uso e a apropriação das tecnologias de informação e comunicação em escolas públicas e privadas de educação básica. E é justamente a desigualdade de oportunidades - no tipo de acesso e nas formas de uso, que impede a vivência de uma educação de qualidade.

A pandemia da covid-19 escancarou como a desigualdade de acesso à tecnologia, em nosso país, é acentuada e prejudicial à aquisição de conhecimento.
A pandemia da covid-19 escancarou como a desigualdade de acesso à tecnologia, em nosso país, é acentuada e prejudicial à aquisição de conhecimento.

Cabe dizer também que a mesma desigualdade se fez visível não só na escola, mas também, por exemplo, em enormes filas de pessoas em frente aos bancos para ter acesso à assistência emergencial. A covid-19 escancarou que o acesso e o uso de qualidade da tecnologia não é apenas um problema da educação, é da sociedade e precisa ser entendido como um Direito Humano.

Além de toda a desigualdade de acesso materializada em desafios de conectividade e uso maior do celular (o que impõe mais restrições ao ensino e aprendizagem do que o computador), o uso que se faz da tecnologia proposto pela escola ainda é muito aquém das oportunidades que se apresentam.

Segundo a pesquisa, 94% de crianças e adolescentes usam a internet na maioria das vezes para ver vídeos, programas, filmes ou séries. Quando perguntados sobre como usam na escola, 85% contam que sua principal atividade é fazer pesquisas. O que esses dados revelam? A tecnologia na vida e na escola ainda está longe de ser explorada em uma relação ativa, ou seja, crítica e criativa. Atividades de consumo de conteúdo no sentido de assistir, ler, buscar informações e até mesmo pesquisar conteúdos são mais frequentes.

E pouco potente se pensarmos no uso da tecnologia para processos de criação e cidadania como criar um jogo, uma campanha, uma solução para um problema que afeta a si ou a sua comunidade. Ou ainda, aprender e cultivar, no ambiente digital, valores como o respeito às diferenças, aprender a identificar os perigos da vida e o que fazer para os enfrentar. Isso significa impregnar o currículo escolar de tecnologia para a vida, sobre a vida presente e futura e junto com todos os seus desafios. Impregnar as experiências escolares de autoria e de construção significativa de pensamento, não só de assimilação e acúmulo de informação.

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A Base Nacional Comum Curricular se atentou a uma relação ativa com a tecnologia. Uma transformação curricular apostando nos estudantes não apenas como usuários, mas como produtores de tecnologias que ajudem a enfrentar os desafios de sua vida pessoal, profissional e social. Engana-se quem acha que mais uma disciplina no currículo cumpriria esse papel. Como a própria BNCC apresenta, a tecnologia deve constar de modo transversal às áreas de conhecimento e componentes curriculares. Além do mais, mirando sua utilização no dia a dia, tão bem expresso nas competências gerais a serem desenvolvidas por toda a educação básica.

Entre a letra das leis e o chão da escola há um degrau alto. Formação de professores - apesar de muito estratégico - não pode ser a única aposta para termos um uso cada vez mais crítico e criativo das tecnologias de informação e comunicação por todos os estudantes brasileiros. A qualificação dessa política educacional passa por certa coerência e articulação entre esforços financeiros, curriculares, formativos, produção de materiais, acesso a equipamentos de largo alcance (computadores), empenho intersetorial entre diferentes secretarias e colaboração entre União, Estados e Municípios. Ou melhor, refere-se a esforços públicos e não de natureza individual ou de um setor apenas.

Junto à política, é preciso ainda derrubar mitos muito presentes na educação, reflexos da sociedade excludente que ainda somos. De uma tecnologia única e boa para todo mundo desconsiderando as diferentes formas de ser, de se comunicar, de participar e de aprender sobre o mundo. Do investimento financeiro como resposta exclusiva ao acesso em detrimento a um pensamento inventivo, de baixo custo e sustentável na criação de soluções tecnológicas a serviço do pedagógico. Das barreiras atitudinais (portanto, políticas) impostas às meninas, especialmente as crianças e adolescentes, negras em serem reconhecidas como capazes de desenvolver e participar desse universo.

Sobre isso, o Instituto Alana realiza atualmente a série de conversas online "Ser criança no mundo digital" que reúnem especialistas das áreas de educação, psicologia, tecnologia e direito para debater a relação da criança e do adolescente com o mundo digital e os papéis da família, educação, governo, empresas e plataformas de tecnologia. 

Aprender a pensar e refletir sobre as estruturas que apoiam o existir mediado por tecnologias - se inclusivas ou excludentes - se amparadas ou não, em uma perspectiva de direitos humanos, é algo a ser perseguido. Se a aprendizagem da cidadania é uma finalidade da educação de crianças e adolescentes, é impossível negar que um dos espaços que exigem essa aprendizagem é o ambiente digital e as relações mediadas por tecnologias.

A tecnologia não vai resolver todos os problemas da educação, muito menos da sociedade brasileira. Mas ela pode ser a oportunidade para transformações nas relações de poder que permeiam os currículos escolares. E essa transformação passa por enxergar crianças e adolescentes como criadores de linguagens. Demanda mais espaços, dentro e fora da escola, para sermos criadores e usuários éticos de tecnologias e não meramente consumidores das que aí existem.

(*) Diana Silva é pesquisadora da área de educação do Instituto Alana e Raquel Franzim é coordenadora de educação do Instituto Alana.